segunda-feira, 24 de março de 2014

O Império Contra-Ataca

Você que anda na Ciclofaixa de Lazer no fim de semana, não se sinta tão incluído assim. Você que usa a bicicleta para transporte durante a semana, você não é tão hipster assim. Tem uma massa de ciclistas. Até metade da década passada, você não os percebia, pareciam poucos, mas pode ter certeza, eles sempre estiveram nas ruas. Acostumados a serem empurrados pra sarjeta ou pra calçada, sempre aguentaram todos os finos e outros desrespeitos no trânsito que todos os motoristas - inclusive os atuais "in" e hipster - na época ainda essencialmente motoristas também, sempre deram. Esses ciclistas se encolhiam, esperavam vocês - na verdade nós! Esse ciclista que vos escreve já foi motorista por 18 anos e fez muita merda no trânsito - passarem e continuavam, seguiam em frente, na época que os problemas do trânsito se resolviam de uma única forma, a compra do bem prático, de luxo, e totalmente excludente: o carro.

A questão é que o cenário mudou. Os ciclistas invisíveis continuam lá, como sempre. Talvez menos invisíveis. Mas quem está incomodando o sistema rodoviarista de mobilidade, que inclui usuários, governo, mídia, são os novos usuários de bicicletas para transporte. Eles - nós - não são melhores do que os ciclistas que aparecem nesse vídeo acima. Na verdade, deveriamos aprender muito com eles. Mas por termos usufruido de uma educação escolar um pouco mais privilegiada, nós não nos encostamos para o motorista passar. Batemos no vidro, gritamos, reclamamos, discutimos. O motorista, acostumado a ser o rei da rua, está lá no seu camelo de lata gigante, mas agora tem que ouvir. Ouve na rua, nos jornais, na TV, ouve o prefeito falar no assunto, o secretário de mobilidade - que só fala, nada faz -, e começa a encher a paciência de tanto ouvir falar em bicicleta. Talvez no correr do seu dia estressante ele não perceba exatamente, mas, acostumado a ver a cidade inteira construída somente para quem tem carro, começa a se incomodar de tanto ouvir falarem sobre uma solução que ele acha que não é pra ele, e que sabe que vai tirar espaço de sua banheira com quatro rodas. Essa é uma novidade que as pessoas têm que começar a engolir. ATENÇÃO >>> as soluções podem servir para a coletividade, mesmo que você nunca use!

Essa reação dos motoristas, de acusar os ciclistas de irresponsáveis, de reclamar do ciclista e do pedestre, que não respeitam as leis de trânsito, que são folgados, já nos acostumamos. Continuaremos rebatendo uma a uma cada uma dessas generalizações vergonhosas, mas o que vem ocorrendo na mídia, formadora de opinião, é preocupante, revoltante... é ESCROTO. Em menos de um mês, da sexta-feira de carnaval pra essa semana, os três grandes jornais do Estado: Jornal do Commercio, Diário de Pernambuco e Folha de Pernambuco, publicaram matérias criticando o comportamento de ciclistas e pedestres, um grande desserviço à sociedade. É claramente uma publicação de ideias revanchistas, no momento em que uma parte da sociedade se une para valorizar o elemento humano na cidade e no trânsito. E pior, nenhuma das três matérias traz reflexão acerca da principal pergunta sobre um comportamento humano: POR QUÊ???

Vejam... as leis de trânsito no mundo inteiro punem basicamente comportamentos nocivos à sociedade, mesmo sem a ocorrência do resultado, o "acidente". Isso se torna necessário para um ambiente onde as pessoas têm equipamentos pesados e velozes nas ruas para se locomoverem. Portanto, analisar comportamentos dos agentes envolvidos no trânsito sem perguntar o por quê tira qualquer legitimidade da análise e da punição criada para quem não cumprir os comportamentos desejados.
Alguns exemplos:

- O pedestre atravessou com o sinal fechado. Por quê? Por que no Pina o sinal de pedestre fica fechado até 8 minutos. Motorista amigo, se um sinal ficar fechado 3 minutos para o senhor, certamente furarás o semáforo, ainda tuitarás reclamando do absurdo.

- O pedestre atravessou a rua fora da faixa. Por que? Por que não tem faixa na Praça do Parnamirim, a única solução para sair da praça é atravessando fora da faixa.

Pedestre e ciclistas x carros: devem ser tratados de forma isonômica?
Ciclistas incluídos no trânsito não desrespeitam regras.
- O ciclista furou o semáforo. Mas afinal, alguém que não tem uma carcaça de uma tonelada para lhe proteger, por que esse energúmeno fura um sagrado semáforo? Por que ele pesa os riscos, e não vindo carro no cruzamento, ele prefere furar o semáforo e trafegar 200, 300 metros sem todos os veículos que estavam ao seu lado no semáforo lhes tirando fino, fazendo conversões perigosas à sua frente. Veja na foto ao lado uma Bikebox, comum na Europa e Estados Unidos, e até em São Paulo (infelizmente compartilhada com moto). Uma estrutura dessas em um cruzamento aumenta o engarrafamento em um carro por fila, e dá aos ciclistas opção segura para não precisarem invadir a faixa de pedestre.

Erros existem em todos os modais. Quem erra são as pessoas, e não os modais. Mas quais as consequências desses erros? Um motorista a 80km/h na Agamenon Magalhães pode causar os mesmos danos que um pedestre furando um semáforo fechado já há 7 minutos? E afinal, por que um motorista dirige a 80km/h no ambiente urbano? Esse é um por que interessante de responder. Por que há poucos radares na cidade?

Por que o motorista estaciona em cima da calçada? A falta de vagas justifica usar o espaço do pedestre?
É na resposta dos porques que podemos justificar ou não o comportamento de todos no trânsito. A verdade é que em sua grande maioria o pedestre e o ciclista quebram regras de um sistema que não foi feito pra eles, por um único motivo: segurança.

Vamos terminar comentando as três matérias rapidamente, para demonstrar como foram parciais, revanchistas, conduzidas de forma equivocada. Está na hora de os jornalistas colocarem o que ouvem do outro lado da história.
Blog de Olho no Trânsito (JC) - A jornalista procurou os ciclistas, mas escreveu somente o que queria para chegar ao resultado que já tinha em mente antes de estudar sobre o assunto. Ela usou uma : "alerta  que a mistura álcool e direção para o ciclista é tão perigosa quanto para o motociclista" e "A moto ainda consegue ser pior por ser um veículo motorizado, que pode desenvolver altas velocidades. O trauma na bike é menor, mas alcoolizado, o ciclista potencializa o risco de atropelamento.". O ponto de vista dos ciclistas foi ocultado da matéria, já que as perguntas da jornalista pescavam uma resposta que indicasse que estávamos incentivando a beber e pedalar. Vamos nos abster de discutir o assunto aqui. A lei já define o que pode e o que não pode, e discutir as permissividades para ciclistas e pedestres na lei não é o objetivo desse post.
definição pessoal do que é certo ou errado para escrever a matéria. Procurou um especialista sobre motos (Oi???) pra falar sobre os riscos da mistura bicicleta+álcool.  O especialista faz duas afirmações contraditórias, resultado de pesquisa nenhuma dele e da jornalista

Blog Mobilidade Urbana (Diario) - Esse texto irresponsável foi copiado do site Vrum, especializado no público que tem carro.  Ele é praticamente um estímulo aos motoristas para avançarem em cima de pedestres infratores. O assunto é a possibilidade de multar pedestres. O que isso trará de mudança para o nosso trânsito nessa cidade com pouquíssimas faixas? Certamente tirará mais gente das calçadas, e os empurrará para outros modais, principalmente o carro. A aplicação de multas ao pedestre mudaria em muito pouco nosso cenário de mobilidade no quesito segurança. Não há na matéria nenhuma reflexão sobre o fato das cidades serem péssimas para pedestres no Brasil. O nível de utilidade de uma matéria dessas para o trânsito é mínimo.

De quem é a culpa? Não interessa.
Ninguém merece morrer por um erro.
Cotidiano (Folha de PE) - O repórter da Folha procurou ciclistas, recebeu dados, informações sobre mortes no trânsito. Ouviu comentários sobre como outras cidades estão diminuindo as mortes no trânsito. Não publicou nada disso. Tratou ciclistas, patinadores e usuários de skate como invasores no trânsito. Em nenhum momento jogou a responsabilidade nos veículos maiores. Tratou a matéria inteira da irresponsabilidade dos veículos não motorizados. Poderia muito bem ter dado um aviso aos motoristas " a cidade não está preparada para esses novos usuários. É recomendável diminuir a velocidade e dobrar a atenção ao avistar pessoas desprotegidas no asfalto.". E numa matéria toda sobre comportamento de ciclistas, colocou este quadro com números de mortes e vítimas de acidentes no Estado. Fez uma associação direta entre os fatos.

Estamos nas Cruzadas contra os não motorizados, a mídia se apresenta imparcial, e exige de duas figuras o mesmo comportamento exemplar. Exige indiretamente do ciclista e do pedestre que sejam perfeitos, que nunca cometam erros - erros estes que colocam em risco suas próprias vidas - para que possam reclamar do motorista que joga um carro de 1000kg em cima deles. É isso que vocês chamam de isonomia?

Saiam da banheira de hidromassagem sobre quatro rodas e venham andar e pedalar sobre brasas com a gente. Quem sabe assim, com os pés cheios de bolhas, vocês consigam escutar e entender o que se diz do outro lado da notícia. Enquanto permanece esse contra-ataque, está saindo do papel o projeto do corredor de BRT da Caxangá com total priorização a carros e ônibus, relegando pedestres e ciclistas a um espaço menor do que o adequado, tudo em nome da Santa Mobilidade, medida em fluxo de veículos por hora.

3 comentários:

  1. Ótimo texto, acompanho sempre o Cicloação, acredito na mudança! Só depende de nós!

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  2. "Mas por termos usufruido de uma educação escolar um pouco mais privilegiada, nós não nos encostamos para o motorista passar. Batemos no vidro, gritamos, reclamamos, discutimos. O motorista, acostumado a ser o rei da rua, está lá no seu camelo de lata gigante, mas agora tem que ouvir."

    Ontem me aconteceu uma situação que me fez imediatamente lembrar desse texto. Um motorista forçou passagem ao meu lado e acabou me espremendo para o cantinho, permanecendo emparelhado comigo, por causa do trânsito. Prontamente dei dois chutes brandos na porta dele, com cara de envergonhado o motorista reduziu e me cedeu passagem.

    Se você aceita a submisso, a situação não muda.

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