quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Mobilidade pré-paga: um sistema que não funciona sozinho

Está na moda bater no automóvel. Especialistas, urbanistas, cicloativistas, pedestres, até políticos e gestores que não fazem nada pra tirar espaço do automóvel perceberam como é in bater no automóvel, mesmo que seja somente no discurso.

Não faltam textos sobre segurança no trânsito, redução de velocidade, impunidade, necessidade de fiscalização, redesenho da cidade, compartilhamento de vias, etc, e isso está TODOS OS DIAS na mídia. Algum amigo seu ciclochato com certeza publicou hoje algum post sobre o fechamento das ruas de Paris para os carros, a favor das ciclovias de São Paulo, reclamando da prefeitura de outra cidade que não faz nada, ou algo sobre o ex-prefeito de Bogotá (Enrique Peñalosa) falando que estacionamento não é um problema público, ou foto de carro estacionado na calçada... aaaaahhhhhh... essa já cansou, não é? Pois bem, tem argumento jurídico, técnico, tem argumento de tudo que é jeito e muita gente que tem carro não experimenta outros modais de jeito nenhum. Por que?

Ok, o carro é confortável, tem ar condicionado, você vai sozinho sem ser incomodado por ninguém, a não ser um ou outro ciclista que aparece na sua frente. É muito cômodo, já que você sai a maioria das vezes da porta de casa até a porta do trabalho. É praticamente sua segunda casa. Mas não é só isso. Mobilidade Pré-Paga. O ônibus e o metrô você paga quando usa, ou no máximo quando carrega o bilhete eletrônico. Pedestre? Paga quase nada além de umas colheres a mais de feijão ou um gasto um
A realidade da mobilidade pré-paga: espaço limitado para cada vez mais usuários
pouco maior do sapato. O ciclista vai nessa linha também, ele paga a bicicleta antes - ou mesmo nem paga usando as de aluguel -, mas o custo é consideravelmente menor que o de um automóvel. Do custo do carro, não tem como você escapar. Mesmo que você parcele, vários dos componentes do custo como valor de entrada, IPVA, licenciamento, seguro, estão lá, ou estarão mensalmente na sua lista de dívidas a pagar. Por isso se torna bastante difícil convencer uma pessoa que tem um carro na garagem a utilizar outro modal. Claro, a escolha de que modal utilizar passa por uma análise de vantagens e desvantagens de todas as variáveis que citei acima, mas está lá, na cabeça do motorista, a informação "já está tudo pago", "trabalhei muito na vida pra poder andar de carro, paguei por isso", apesar de não estar  tudo pago já, pois os custos do uso como desgastes das peças, estacionamento e combustível são pagos normalmente durante o uso diário. Então, como dizer pra alguém que já tem um carro que táxi é mais barato para percursos diários abaixo de 17km, se ele já pagou pelo carro? Como dizer para algúem que tem um plano pré-pago caro que ele deve deixar seus créditos na garagem e fazer um pós-pago?
Existem todos os motivos na escolha do modal que você já leu em vários posts deste e de outros blogs como custo, tempo, conforto, status, segurança, mas também não é só isso. Existe uma variável no fator custo que vai além do quanto se paga: é QUANDO se paga. E nesse quesito especificamente, o automóvel é um modal que se encontra na categoria

Isso tudo é tão verdade que quem tem um carro e começa a pedalar, e pedalar cada vez mais, o faz porque alguma vantagem preponderante da bicicleta, normalmente o tempo, começou a fazer pressão na balança contra esse fator custo pré-pago. O novo usuário da bicicleta começa a se perguntar se deve ou não vender o carro, mas só o faz quando consegue calcular que realmente tem como se virar com todos os outros modais de forma mais barata e não tão mais complicada do que com o carro. Começa a ficar sem sentido ter uma modal pré-pago na garagem pra não usar, enquanto você está usando cada vez mais outros modais pós pagos mais baratos. Essa pressão pelo que você já pagou é grande, e normalmente a decisão de vender o carro pra não comprar outro e partir para a mobilidade pós paga passa por um período de análise das variáveis, cálculos. Se consulta outros amigos que já tinham feito a mudança, ouve-se tudo, mas ainda com uma certa desconfiança. A ficha só cai mesmo quando você vende o carro e o dinheiro entra na conta. Depois outros terão a mesma dificuldade e irãote fazer várias perguntas, por algumas ou várias semanas, até tomarem a mesma decisão.

Pra facilitar o entendimento desse conceito de mobilidade pré-paga, vamos comparar com um pré-pago e pós pago de telefonia/internet, claro que com algumas adaptações. Se você considerar o fator preço, e pensar que você tem um pré-pago de 30 mil reais ou mais na garagem, por quê você usaria um pós pago de 150 reais no mês? Você já pagou os 30 mil, qualquer 3 reais que você pagar a mais para ir de ônibus não faz sentido. A única coisa que te compeliria a fazer isso é se o pré-pago parar de funcionar a contento, que é o que vem acontecendo com as grandes cidades, lotadas de usuários do
Mobilidade pré-paga: aguardando o download
sistema pré-pago. Somente com o colapso desse sistema a mobilidade urbana começou a ser discutida fora dos círculos de especialistas. Se o pré-pago funciona meia boca (os dados engarrafam, mas ainda assim chegam), você segue escravizado ao que já pagou pelo plano. Às vezes você reclama, vem o provedor do serviço (o prefeito ou o governador) e aumenta a capacidade de tráfego de dados (alarga a via, coloca um viaduto pra diminuir o congestionamento), e você sente que melhorou um pouco, mas não param de aparecer novos usuários de pré-pago, já que o pós pago não é bom. Todos querem trafegar por aquela via de maior capacidade, evitar sinais, como várias lebres gordas, milhões delas tentando correr juntas, uma impossibilidade completa, enquanto a tartaruga vai passando entre as lebres com sua mobilidade pós paga (bicicleta ou ônibus na faixa exclusiva), mas você insiste em ser uma lebre, você já pagou caro por esse privilégio.

Outra característica importante da mobilidade pós paga é a multiplicidade de opções que você tem, ao contrário da pré-paga, essa que você tem na garagem. Quem tá nos planos pós pagos usa a opção que lhe convém para cada caso: bicicleta, ônibus, trem, metrô, caminhar, ou mesmo paga um pouco mais e subloca o pré-pago de alguém se necessário (Táxi, Uber ou serviços de aluguel de automóvel), o que sai bem mais barato do que pagar dezenas de milhares de reais para se escravizar no pré-pago. Esse é um trunfo da mobilidade pós paga que a pré-paga nunca vai ter. É uma vantagem sem comparação para as pessoas que optaram por esse tipo de mobilidade, mas acaba sendo uma vantagem para a cidade também, pois essas pessoas vão se adaptar às variações do funcionamento de cada modal diariamente. Choveu, não quer pedalar na chuva apesar das soluções existentes? Vai de ônibus ou táxi. Greve de ônibus, horário de pico, busão lotado? Tem ciclovia, pega uma bicicleta de aluguel ou a sua empoeirada da garagem e vai. Metrô quebrou? Há todas essas outras opções. É nesse ponto que se perde qualquer discurso que queira minimizar a importância de um modal pós pago em detrimento de outro. "Tem que investir primeiro nos ônibus" ou "não se deve fazer ciclovia antes de se corrigir as calçadas" são geralmente discursos manipuladores que objetivam colocar um modal pós pago contra o outro, o que não tem o menor sentido, ou são discursos realmente inocentes de quem não tem uma visão sistêmica da mobilidade pós paga. É necessário investir em todos os pós pagos, pois há pessoas atualmente no pré-pago que têm maior propensão a se adaptarem a pós pagos diferentes, em situações diferentes. As opções têm que existir todas ao mesmo tempo, e se completam. Essa independência de um modal específico é fundamental para o bom funcionamento do sistema pós pago de mobilidade.
Times Square em Nova Iorque: alterada de pré-pago para pós pago. Redução do engarrafamento na cidade.
Mas ok, você pode achar tudo isso uma grande idiotice. Você quer continuar pagando uma grana massa pra ter o privilégio de ter o pré-pago. É um direito seu, uma liberdade conquistada.  Tudo bem, a mobilidade pré-paga não precisa acabar, ela pode continuar existindo por um bom tempo, ninguém está querendo forçar as pessoas a mudarem para o pós pago. Apesar de ela ser muito mais cara que as opções pós pagas, as pessoas insistem em continuar nela porquê a mobilidade pós paga, mesmo sendo mais barata e tendo capacidade de atender muito mais gente, não satisfaz a todos. A questão é que a largura de banda do pré-pago, o espaço para circulação de dados (ou de automóveis) é limitado, não tem muito mais o que inventar.  Já imaginou todo mundo com plano de internet pré-pago de alta velocidade baixando ao mesmo tempo filmes de altíssima resolução? O resultado: ninguém consegue baixar o filme. Mas se você diminui a velocidade de todos os pré-pagos (nas Marginais), ou dá um pouco da largura de banda para o pós pago (faixas exclusivas de ônibus, ciclovias, calçadas), e com isso dá uma melhorada nas condições para os pós pagos entrarem nas redes sociais, checarem e-mail, enviarem texto por whatsapp, eles vão gastar seu tempo fazendo essas outras coisas que demandam menos a internet (a cidade) do que ver filme de altíssima resolução (andar de carro) o tempo inteiro, e então vai melhorar pra todo mundo. A gente precisa justamente dar condições das pessoas mudarem para o pós pago para experimentarem estes outros usos. dar vantagens para que as pessoas mudem de plano, e isso fará certamente sobrar mais espaço para o pré-pago automóvel. Não há cidade no mundo que tenha conseguido melhorar a circulação de dados (pessoas) no pré-pago sem estimular as pessoas a mudarem para o pós pago (todo o resto). Toda vez que um motorista invade uma faixa exclusiva de ônibus, estaciona na ciclovia, dá um fino no ciclista, estaciona na calçada, ou reclama de melhorias para o pós pago, ele está convidando os usuários de pós pago a voltarem para o pré-pago. De vez em quando surge o discurso em defesa do maravilhoso metrô, que é a solução dos sonhos dos pré-pagos. Eles chegam a dizer que deixariam de usar seus planos pré-pagos para usarem o pós pago metrô. Mas na real, o principal motivo de defesa do metrô é o fato de ser um sistema pós pago que não tira um pedaço da largura de banda do pré-pago. É caro, demora a ser feito - vide metrô de São Paulo, a cidade mais rica do país - e nunca vai conseguir atender todos os usos que os pós pagos precisam. Várias cidades grandes têm metrôs gigantescos e estão investindo em outras soluções pós pagas, pois sabem que o metrô não resolve tudo.

Então, meu amigo, a solução pra teu plano privilegiado, cheio de confortos e facilidades, voltar a funcionar, é fazer com que os outros planos funcionem melhor, e pra fazer isso, muitas vezes é necessário doar um pequeno pedaço do espaço destinado ao pré-pago, já que não há como se criar novos espaços sempre. Afinal, você sabe que o grande problema do teu plano é excesso de usuários, tanto que de madrugada, com vários usuários de pré-pago dormindo, ele funciona perfeitamente e com sobra (igual a maioria das prestadoras de acesso à internet hehehe). Se o pré-pago te oferece um conforto que você já pagou e não quer abrir mão, ou o pós pago não é suficientemente atraente para você mudar de plano, isso não é uma realidade somente pra você, mas pra todo mundo que está no pré-pago, em graus diferentes de adaptabilidade à mobilidade pós paga. E se uma medida que melhorou o serviço pós pago está te incomodando, lembra que ela vai puxar alguns usuários pra lá, comemore! Afinal, se você começar a reclamar e tudo do lado de lá voltar a piorar, pode ter certeza, esse usuário que anteriormente tinha trocado de plano vai voltar pro pré-pago, pra dividir espaço contigo, e não tem acelerador (de internet) que dê jeito, vai ficar todo mundo parado olhando pra barra vermelha do Youtube andando lentamente, demorando duas horas pra carregar um curtametragem de terror na qualidade máxima.

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Ben Affleck atropela e mata Jennifer Garner!


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Desde esta quarta, não se fala em outra coisa além da suposta colisão entre Gisele Bündchen e Tom Brady. De acordo com a maior parte da grande mídia, o atropelamento teria ocorrido por culpa de Jennifer Garner, que juntamente com a babá Christine Ouzonian, furou um semáforo na frente do motorista e marido Ben Affleck.

Não contente em ter pedalado no meio da pista com sua bicicleta diante de Ben Affleck enquanto este dirigia inocentemente seu automóvel em julho, a babá se jogou então na frente do automóvel de Tom Brady, enquanto Gisele atravessava a via, o que teria resultado na colisão com sua SUV que vinha sendo tranquilamente conduzida a 70km/h.

O que todos esses veículos - de comunicação - parecem ter esquecido é que Ben Affleck e Tom Brady são MOTORISTAS HABILITADOS, devidamente conhecedores das normas de trânsito. Por isso o Cicloação resolveu fazer o seu próprio título:


“Ben Affleck atropela e mata Jennifer Garner”


Até quando os ciclistas sempre serão vistos como ardilosos e os motoristas como perfeitos inocentes?

A narrativa descrita diariamente nos jornais é quase sempre a mesma: o motorista tem um comportamento exemplar, como nos belos comerciais de automóveis. De repente, passa um pedestre ou um ciclista na sua frente, que o impede de seguir o seu caminho natural, seduzindo o motorista a atropelá-lo.

A culpa é sempre do ciclista, porque “o trânsito e os motoristas são assim mesmo”, a rua foi feita pra eles. E ainda sobra para o prefeito, culpado por estimular pedestres e  ciclistas a se jogarem na rua e  consequentemente na frente dos carros.

O motorista não é responsabilizado pela colisão, como se não tivesse o poder de evitá-la. Até quando?!

Nem está claro, ainda, se Gisele e Tom Brady colidiram de fato. A Page Six revelou, inclusive, que vários pedestres atravessaram a rua enquanto Brady dirigia no ápice de sua inocência. Nenhum foi atingido, o que dilui as certezas sobre a existência de uma colisão.

O que dá para ter certeza é que o jornalismo é carrocrata, sempre defensor do motorista, e precisa melhorar.

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Há vários textos na web comparando a insegurança que os ciclistas vivem em relação à uma sociedade do automóvel com o mundo machista que as mulheres vivem. Percebemos a clareza dessa situação quando verificamos que nas cidades brasileiras, construídas para o automóvel e com o machismo presente nas ruas, o percentual de mulheres é de cerca de 50%, mas o percentual de mulheres pedalando ainda é baixo, menos de 10% onde não há estrutura cicloviária e segurança. Nas ruas, elas são pressionadas não só pela carrocracia, mas pelo machismo presente nas ameaças, nos “elogios” machistas, no medo da violação do seu próprio corpo.

Resolvemos então usar essa comparação entre ser ciclista e ser mulher, aplicando esta comparação nesse curto e ótimo texto do Brasil Post sobre a excelente postagem do Think Olga parodiando o senso comum de que a babá foi culpada pela separação.

Nesse mundo machista e carrocrata, com forte relação inclusive entre o machismo e a carrocracia, a bicicleta é mais um instrumento de empoderamento da mulher. E comemoramos cada mulher que encontramos no caminho pedalando. A cidade é delas, e elas têm um poder enorme para transformar a cidade para melhor.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Sentando no selim

A bicicleta foi e sempre será um instrumento de liberdade para a mulher. Estudos comprovam que cidades mais seguras para pedalar e menos opressoras, tanto no sentido da segurança no trânsito como do machismo (se você é mulher, sabe o quanto é difícil pedalar e ficar ouvindo cantadas machistas o tempo inteiro), têm mais mulheres nas ruas pedalando.

Esse belíssimo texto da revista Bone Shaker nº 14 fala sobre isso de um jeito tão legal que traduzimos pra publicar aqui no Cicloação. Por sinal, fica a dica: a revista Bone Shaker é das melhores que existem quando o assunto é bicicleta. Vende pela internet e chega no Brasil!

Curta o texto. E que tenhamos cada vez mais e mais mulheres pedalando!

Sentando no selim

Não posso deixar de sorrir quando eu me vejo inclinada sobre a desgastada e enferrujada bicicleta, segurando a ferramenta com os meus dedos doloridos e sujos de óleo. Três semana atrás, meu pai tinha ajeitado minha bicicleta - levantou o selim, consertou meu dínamo e ajustou meus freios. E agora, enquanto eu ajudo minha amiga iraniana a baixar seu selim, dou uma olhada na corrente avermelhada, me lembro de lhe dar minhas, agora redundantes, luzes traseiras e checo novamente se seus freios dianteiros realmente funcionam.
O pino está finalmente apertado. Dou um passo atrás e observo assustada minha amiga tentar (e não conseguir) passar a perna por cima do seu selim. Algo me diz que a sua minissaia não é o problema.
"Você já teve uma bicicleta?"- pergunto-lhe hesitante.
"No Irã?" - ela me olha. "A gente costumava pedalar nos parques quando criança, mas, para as mulheres, é proibido pedalar em público".
Minha amiga tem 28 anos. Eu me pergunto quando ela deixou de ser criança, mas engulo de volta a pergunta. Em vez disso, pego minha bicicleta e lhe mostro como subir e descer facilmente da magrela, mesmo de saia. A máxima "como andar de bicicleta" me ocorre. Claramente, fazer isso de verdade não é a mesma coisa. Mas então ela tenta e, balançando como uma criança de dez anos usando a bicicleta da irmã mais velha, adoravelmente confiante na sua própria inexperiência. Eu cuido dela com certo orgulho e, para surpresa dos fumantes agrupados ali perto, começo uma corridinha, segurando-a e mantendo seu equilíbrio enquanto ela pedala, à semelhança do que meu pai fez quase vinte anos atrás, seguindo a minha bicicleta de princesa decorada com fitinhas coloridas.
Ficamos ali por pelo menos meia hora, rindo alegres e repetindo o processo do início, enquanto eu lhe explicava o que são as marchas do câmbio, como funciona um dínamo e por que a luz dela não ligava automaticamente.
Mais tarde, pedalo para casa mais devagar do que de costume. A falta de liberdade que minha amiga deixou pra trás quando veio estudar na Europa sempre foi algo abstrato para mim. Tentava não julgar uma cultura sobre a qual conhecia muito pouco. Mas num espasmo assustado, percebi que, se fosse eu, teria tido meus livros e minha bicicleta tirados de mim. Eu nunca tinha questionado as pequenas liberdades que minha bicicleta e meus companheiros alforges me permitiram, seja liberdade social ou econômica. Minhas duas rodas me levaram a festas quando adolescente, me carregaram pela cidade quando eu estava sem grana e levaram-me aos vários empregos de férias de verão que tive.
Durante o verão, milhares de nós, fomos inspiradas pela luta de uma garota pela liberdade quando assistimos ao filme saudita Wadjda. Enquanto escrevo, mulheres no Egito estão protestando pelo direito de pedalar sem serem sexualmente assediadas. É a campanha "Nós Vamos Pedalar". A invenção da bicicleta trouxe um importante instrumento para o feminismo ocidental: de repente, era possível às mulheres de classe média se locomover pela cidade, por si mesmas - roupas femininas menos limitadoras se tornaram necessárias e  aceitáveis.
Pedalar é uma das mais simples liberdades que existem. Tão simples que nós frequentemente nos esquecemos dela. Só que para usufruí-la nós precisamos antes ser capazes de subir na bicicleta.



terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Cuidado com o canto da sereia!

O ciclista que não tira os olhos da sereia.
De vez em quando a indústria automobilística parece estender uma mão para o resto do mundo. Uma bondade sem tamanho, dá gosto de ver. Mas muito cuidado com o que se vê! Truques mirabolantes do mundo capitalista - conhecido também como publicidade - estão aí para te seduzir. A FIAT lançou esta semana a campanha do Novo Punto. E o personagem principal do anúncio é...??? O Novo Punto, claro.


Nunca se viu tanto no país a bicicleta na mídia como opção de mobilidade. O ciclista é constantemente colocado como desrespeitador das leis, como alguém que se arrisca, um aventureiro, um outsider, um hipster. O ataque é constante. Dificilmente vemos o ciclista em reportagens como alguém que fez uma escolha melhor para a cidade, que deve ser valorizado, incluído no trânsito. Ele é posto apenas como uma opção. Com a indústria automobilística - que não quer largar o o$$o -, não é diferente. Além do óbvio de em todas as propagandas de carros, pordemos ver um motorista feliz circulando por uma cidade sem nenhum engarrafamento, ou até mesmo sem nenhum outro carro no seu caminho, dificilmente encontramos bicicletas rodando nesses comerciais. A própria FIAT tem no seu histórico exemplos nada amigáveis com os ciclistas, bem antes desse anúncio  no melhor estilo o-ciclista-quer-ter-um-FIAT. Veja que caminho ela já tomou em um anúncio do dos anos 80/90.


Pra completar, mais recentemente, em 2014, a polêmica campanha dos vacilões no trânsito, que coloca pedestre, ciclista, motorista, todos como vacilões, quando na verdade o grande vacilo é da montadora, em enquadrar crimes de trânsito, as infrações cometidas por quem dirige automóveis de 1 tonelada ou mais na cidade, como vacilos, no mesmo patamar dos vacilos de ciclista e pedestre. Ainda estamos longe do patamar dos países onde os números de mortes no trânsito - que é o que realmente interessa! -, são até 20x menores que no Brasil. O principal motivo disso é o atraso do executivo e do judiciário em se adaptarem e aplicarem o CTB do modo correto, do modo mais funcional para este ambiente tão plural que é o trânsito. Temos pessoas andando a 6km/h, ciclistas a 20km/h, carros a 40, 60, 80km/h no ambiente urbano. Enormes e pesados ônibus também em altas velocidades. A única forma disso se traduzir em um sistema funcional é a aplicação integral do princípio "o maior protege o menor". Voltando à nossa amada Fiat... Veja a campanha do vacilão para o pedestre, esse cara que corresponde historicamente a entre 20% e 30% das mortes no trânsito e tem semáforos de 7 minutos no seu caminho. Esse cara atravessa fora da faixa, ou com o semáforo fechado, e é chamado de vacilão. Os motoristas em sua maioria mal percebem o Pereira esperando E-TER-NA-MEN-TE para atravessar na faixa, ou muitas vezes num cruzamento sem faixa. Mas ele é vacilão, isso é o que importa, segundo a FIAT.


Esses três videos são estratégias diferentes claras, e contam um pouco da história da relação da indústria automobilística com a bicicleta. Primeiro, a ridicularização (o video do motorista que dá ré para o ciclista cair, final do século XX), depois a estratégia do todos somos iguais no trânsito, repetida como uma mantra por todos os cantos das redes sociais, debates, discussões, campanhas governamentais. Essa fase, como já dissemos, foi radicalmente superada nos países mais avançados em humanização do trânsito. E agora entramos na terceira fase - pelo menos na FIAT -, onde se busca uma motorização dos consumidores, mesmo que não utilizem o carro. "Um carro inovador, pra quem tem muita personalidade". A personalidade, de acordo com o anúncio, é andar de bicicleta e ter um carro na garagem. No final do video, uma alisada no capô, demonstrando o velho carinho de sempre pelo automóvel. Esse anúncio é o canto da sereia. Não há dúvida! A intenção da montadora é trazer você de volta para o automóvel, custe o que custar, mesmo que isso te custe a perda de toda a liberdade financeira que a bicicleta te proporcionou. Pode parecer para muitos um sinal de paz, da possibilidade de convivência entre os dois modais na vida de um mesmo consumidor, mas essa realidade é bem difícil de se implementar em países onde a distribuição de renda é baixa e a mobilidade segue um modelo rodoviarista, excludente, de meritocracia no trânsito no melhor estilo "eu melhorei de vida pra ter meu carro, mereci isso". O Brasil tinha em 2011 uma taxa de motorização de 249 automóveis por 1000 habitantes. Nos Estados Unidos, são 809. Na Holanda, 528! Pode parecer que temos muito o que avançar em motorização, mas há uma grande diferença entre nós e a Holanda, como exemplo mais extremo. Como num país repleto de bicicletas as pessoas têm mais do dobro de carros que nós? Lá praticamente não há engarrafamentos e a taxa de morte no trânsito de Amsterdam é de 1,5/100.000 habitantes, enquanto no Recife esse número é mais de 20 vezes maior, e o engarrafamento....... A resposta é justamente  a operacionalização de um trânsito onde o motorista tem muita responsabilidade, pouco espaço, e muito controle (lê-se fiscalização, ou o que muitos chamam de indústria de multas, o que é uma grande piada). Encher o brasileiro de carros sem uma gestão decente de trânsito é o que temos de realidade hoje: mortes, engarrafamento, perda de tempo e de saúde. Difícil imaginar com o dobro de automóveis nas ruas!

Normalmente as pessoas de renda familiar média ou baixa por aqui gastam pelo menos 20% do seu orçamento mensal para manter um carro na garagem. O custo estimado é de pelo menos R$1100,00 por mês, incluindo tudo que você sempre esquece quando abastece o tanque. Este consumidor, que investe tanto da sua renda num automóvel, não vai abrir mão de utilizá-lo em terra onde o seu uso é estimulado, exageradamente associado a status, e onde o espaço é muito. Se não é o bastante, é porque a implantação de rodovias nunca vai ter dinheiro e espaço suficiente para acompanhar o aumento da frota. Não adianta buscar exemplos fora da curva de pessoas com carro e que pedalam ao trabalho, eles existem principalmente na classe média alta, mas o cenário do país está aí: no Recife, volta às aulas, 250 mil carros a mais circulam diariamente nas ruas, independente de custo, tempo, estresse, ou qualquer outro fator. E as garagens dos prédios lotadas de bicicletas, mal cabendo nas garagens e bicicletários. Sem praticamente nenhuma estrutura cicloviária nem políticas urbanas de desestímulo ao automóvel, ninguém (ou quase ninguém) que gaste mais de mil reais por mês num automóvel vai se enveredar no uso da bicicleta. A cereja do bolo é imaginar se a FIAT sabe disso, se não está nem aí e quer simplesmente atrair de volta o ciclista para dentro do automóvel a qualquer custo.

Apesar de o cenário ainda ser bastante favorável ao automóvel, parecemos estar num ponto de mudança de direção, não só em terras tupiniquins, mas em países que resistiram por anos às vantagens da bicicleta. A FIAT está certa em se preocupar. Em casa, na Itália, se vendeu mais bicicletas que carros em 2012, depois de 48 anos. O movimento não tem volta e a realidade, a qualidade e quantidade de informações estão a favor da bicicleta, as pessoas só precisam se acostumar com a ideia. O avanço é inevitável, e o ciclista que enfrenta o trânsito selvagem de cidades mal preparadas está mais para um vanguardista do que um outsider, seja o classe média que se jogou na rua de saco cheio do trânsito, ou o porteiro que muito antes dos ciclistas de classe média sempre foi de bicicleta ao trabalho pra economizar a passagem do ônibus, sempre invisível para o resto do trânsito. O ciclista não quer ser herói nem ser chamado de senhor certinho ou paladino da justiça, mas deseja segurança e conforto pra chegar no seu destino, e está se acostumando a lutar por isso. Não tem canto da sereia que mude esse cenário!



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