terça-feira, 27 de maio de 2014

Viemos em paz, terráqueos!


"Olá, terráqueo. Eu sou um ciclista e vim para dominar
o planeta Terra (esqueci o capacete em Marte)."
Às vezes tenho a impressão de que todos nós que nos locomovemos de bicicleta somos seres de outro planeta. Implantaram em nossas memórias a ideia de que nascemos da barriga de uma mãe terrestre, nossas memórias de infância, nossa(o) primeira(o) namorada(o), o primeiro tombo de bicicleta! Inseriram aos poucos a ideia de que fazemos parte desta sociedade, mas tudo faz parte de um grande plano de defesa global, para se protegerem de nossos objetivos e ideais de dominação do planeta, já que pretendemos escravizar todos os humanos, lhes obrigando ao fardo de terem que se locomover de bicicleta. Vou explicar o porquê dessa minha suspeita.

Desde que começou essa nova onda de bicicleta como forma de locomoção, surgiu juntamente com o boom de novos ciclistas na rua, a discussão sobre as soluções para mobilidade e sobre os conflitos gerados no trânsito com o surgimento dos commuters, os seres estranhos, excêntricos, que usam a bicicleta para ir ao trabalho. Funcionando como um sistema de defesa dos que insistem no uso do carro, ou pior, nos que insistem que somente o uso do carro para locomoção é viável, começaram a pipocar campanhas focadas no comportamento do ciclista. Recentemente, a Fiat colocou no ar uma campanha que une todos que fazem parte do trânsito em pé de igualdade, reduzindo o desrespeito às leis do trânsito ao grau de "vacilo". Apesar de não existirem casos registrados de pedestres ou ciclistas que invadiram uma parada de ônibus e mataram 3 pessoas e deixaram 6 feridos, insistem em focar as campanhas no comportamento de todas as pessoas, sob o argumento de que todos erramos, desconsiderando, omitindo as diferenças de cada veículo e sua potencialidade de dano.


Um pedestre vacilão. Os carros em alta velocidade no meio da cidade, não.

Pode um ciclista ou algum pedestre causar um dano tão grande à sociedade? Qual a porcentagem de participação de pedestres e ciclistas como causadores de mortes no trânsito? Quantos pedestres já mataram ciclistas no trânsito? Quantos pedestres e ciclistas já mataram motoristas no trânsito? É realmente importante para a redução do número de mortes no trânsito campanhas focadas no pedestre e no ciclista? Sim. E não. Sim: a educação no trânsito é ferramenta importante para a mudança do modo como as pessoas se comportam nas ruas, como entendem a hierarquia do trânsito. Não: no trânsito, segundo o CTB, o maior protege o menor. Portanto, o pedestre e o ciclista merecem o cuidado do motorista SEMPRE, mesmo os pedestres e ciclistas vacilões. É isso que falta nas campanhas de redução de mortes no trânsito. Ninguém merece morrer por causa de um vacilo na rua. Entretanto, a quantidade de campanhas de respeito ao pedestre e ao ciclista é irrisória comparado a campanhas do tipo "Ciclista, use capacete" ou "Pedestre, só atravesse na faixa". As campanhas deveriam seguir o tratamento desigual que a legislação estabelece, de acordo com a responsabilidade de cada um. Intencionalmente ou não, há um movimento de desvitimização do pedestre e do ciclista! Todos somos iguais no trânsito de acordo com a publicidade dos órgãos públicos de trânsito de todo o país, um erro de abordagem que tem um custo muito alto: os números de mortes no trânsito só aumentam ano após ano.


Tem mensagem pro motorista também?

A Prefeitura do Recife, por exemplo, tem nas ruas, mensagens do tipo "Pedestre, só atravesse na faixa", mas não veicula nenhuma mensagem do tipo "Motorista, respeite o pedestre sempre". Resultado: nessa nossa cidade carente de faixas e de instrumentos de controle de velocidade, há grande chance de o motorista acelerar para forçar o pedestre a apertar o passo, seja na faixa ou fora dela.

Chegamos ao ponto de estarmos no meio de uma grande campanha nacional, o Maio Amarelo, focando na redução de mortes no trânsito, e o Governo do Distrito Federal gastou seu dinheiro, tempo e energia pra fazer um vídeo, com produção de alto nível, transformando o ato de pedalar em algo que exige muito cuidado... do ciclista apenas! Esse tipo de campanha desacompanhada de uma ação paralela, forte, alertando o motorista para todas as suas responsabilidades com relação a ciclistas e pedestres trata qualquer um que esteja na rua fora de um carro ou ônibus como um ser estranho, um invasor.  Coaduna com a propagada visão de que ciclista, pedestre, ciclovia e faixa de pedestre não fazem parte do trânsito, são considerados apenas obstáculos.

Várias recomendações para a vítima. ZERO para o potencial agressor.

Esse tipo de campanha, além de tirar a simplicidade do ato de pedalar(capacete, roupas específicas, cuidado com isso, cuidado com aquilo, etc), nos tira - a pedestres e ciclistas - o sentimento necessário de autoestima, de nos sentirmos fazendo parte do trânsito como atores principais que somos. Não é à toa que em Recife e em várias cidades do país, vemos pedestres parados nas calçadas, na frente de faixas de pedestre, esperando pacientemente os carros passarem para finalmente tentarem atravessar - geralmente correndo - somente quando não há movimento de veículos. A falta de campanhas responsáveis e com o foco correto tirou dos próprios pedestres a sensação legítima de serem donos da rua. E mais... Acompanhado desta campanha do Distrito Federal, direcionada para os ciclistas, veio a hashtag #euTenhoCuidado, quando na verdade deveria ser #tenhaCuidadoComigo ou #tenhaCuidadoComOCiclista. E o ciclista? Não deve ter cuidado? Certamente. Mas se analisarmos o trânsito misto, em ruas com compartilhamento de carros - veículos de 1 tonelada a 60kmh -  e bicicletas - veículos de 12kg a um máximo de 30km/h -, falta justamente esse foco no comportamento de quem está conduzindo os veículos mais pesados e mais velozes. A segurança do trânsito depende bem mais do comportamento de quem tem a obrigação, segundo a lei, e a capacidade, segundo a própria dinâmica do trânsito, de proteger os outros atores do trânsito, do que dos elementos mais lentos e leves.

O Governo do Distrito Federal parece que ainda não entendeu essa lógica, por isso encheu o ciclista de cuidados. Veja algumas falhas pequenas e outras maiores da campanha. Como disse anteriormente, a maior das falhas está fora dela, que é não fazer um vídeo tão ou mais incisivo que esse para o motorista. Está na hora de se dividir a responsabilidade no trânsito entre todos proporcionalmente às suas potencialidades de dano, nunca igualmente.


Nenhum ciclista quer pedalar na calçada. O motivo sempre é de auto proteção, evitando trechos perigosos no asfalto.





Continuamos com a lógica do ciclista se adaptar totalmente ao trânsito, de tomar todos os cuidados que deveriam ser do motorista por lei. Veja que no quadro ao lado não tem o PARE para o carro. A preocupação é o ciclista ter o cuidado de parar e acenar para, se o carro parar, então o ciclista poder atravessar.


Enquanto todos podem se vestir como desejam, para o ciclista se exige uma etiqueta para sua própria segurança. De dia...


... e de noite.

Veja como as pessoas se vestem no mundo inteiro para usarem a bicicleta, inclusive aqui no Brasil. É bem diferente do que sugere a campanha. >>> Cycle Chic


Apesar de não ser exigido por lei, apesar de toda a controvérsia sobre os efeitos do uso do capacete coletivamente, apesar das incertezas sobre sua eficácia na proteção individual do ciclista, apesar das estatísticas muitas vezes provarem o contrário, apesar de uma pequena porcentagem da população usar o capacete por inúmeros motivos, inclusive econômicos, se insiste na campanha pró-capacete.

O ciclista sempre é induzido a tomar cuidado com tudo. 

E mais.

E MAIS! A obrigação de total atenção é de quem sai do estacionamento, não só com o ciclista como também com outros veículos motorizados e pedestres também.


O Código de Trânsito Brasileiro determina que o ciclista deve usar os bordos da pista e não somente o bordo direito.



E pra terminar, mostra um carro ao lado do ciclista, muito perto, sem a menor necessidade. Sobrou cuidado para o ciclista, faltou cuidado com detalhes importantes na hora de se definir a campanha.







Em outro vídeo, feito para o motorista, que parece ser da mesma campanha, se evita dar a maior responsabilidade a ele: "motoristas e ciclistas são amigos. E um cuida do outro". Até quando seremos tão paternalistas com quem tem a maior responsabilidade nas ruas? Enquanto isso, o ciclista continua sendo tratado como um alienígena, alguém que apareceu do nada agora, chegou de teletransporte no meio da rua, irresponsável, desconhecedor das leis e dos costumes, e que tem tudo a aprender. Falta justamente o outro lado, que é ensinar o motorista a conviver com esse novo elemento, pelo menos na mídia, porque ciclista tem na rua desde sempre. Eles não chegaram de disco voador, estavam apenas invisíveis.



Ciclistas Invisíveis de Casa Amarela - Recife


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