segunda-feira, 26 de maio de 2014

Sabe de nada, dependente!

Parece uma decisão simples a escolha de como se locomover nas grandes cidades. Os critérios considerados são já bastante batidos: distância, conforto, segurança, tempo de percurso, custo e até mesmo sustentabilidade, para alguns. Alguns desses critérios são inalteráveis de acordo com a percepção e o tempo, ou sofrem poucas alterações. A distância por exemplo, já determina a possibilidade de se ir a pé ou de bicicleta. Por mais que existam casos isolados de pessoas que usam a bicicleta para ir trabalhar a 12 ou até mesmo 25 quilômetros de casa, esses casos são exceções existentes em cidades onde os sistemas de transporte não funcionam a contento. No geral, distâncias de até 2km deveriar ser vencidas a pé na maioria dos casos, de até 6km de bicicleta, e acima disso de transporte público, sendo o carro um modal que escapa dessas regras, recomendável para casos especiais.

Liberdade? Quem passa a maior parte
do seu tempo dirigindo nas montanhas?
Outros critérios são bastante subjetivos, de forma que há uma grande discrepância entre a realidade e a percepção das pessoas. Um dos motivos alegados pelos motoristas ao justificar o uso do carro é a segurança, nos dois sentidos: segurança contra furto ou roubo e segurança no trânsito contra acidentes. Entretanto, no engarrafamento o motorista está bastante vulnerável (não pretendo contar com a opção de blindar todos os carros, algo bem distante de nossa realidade social). E, sobre a segurança no trânsito, também é bastante contestável a ideia de que dentro de um carro se está mais seguro, além do fato de ser a existência do carro um dos fatores da insegurança coletiva que atinge a todos no trânsito. Mas há um critério pouco discutido e que nem é pensado no momento de se escolher como se locomover no dia a dia: a independência, quase um sinônimo de uma das palavras mais utilizadas em propagandas de automóveis, a liberdade.

A realidade.



O critério independência não se reduz a ser livre do engarrafamento. Podemos tentar traduzir o significado desse termo para a mobilidade da seguinte forma: se verifica o nível de independência de um modal de acordo com a complexidade do uso do mesmo, a estrutura necessária para o uso e a quantidade de fatores externos que influenciam esse uso. Podemos incluir também o tempo necessário para se usar este modal, não só o tempo de deslocamento, mas também para proporcionar esse deslocamento.

Estação de metrô em São Paulo durante as greves de ônibus.
Nesse mês de maio, com a greve dos ônibus em São Paulo, pudemos perceber a face mais cruel dessa dependência de um modal, a dependência de um sistema de transporte. E em países onde está consolidada uma estrutura viária voltada majoritariamente para os veículos motorizados, as pessoas se dividem entre duas categorias: motoristas e usuários de transporte público. Certamente, em cidades como São Paulo, as calçadas e a bicicleta não resolveriam a situação de muita gente. Mas caso a cidade considerasse esses modais, daria para uma boa parcela dos usuários, os que moram a até 10km do trabalho - pedalando, se faz essa distância em uns 40 minutos - uma opção de deslocamento em dias como esses, lhes proporcionando a oportunidade de não dependerem do sistema do transporte em casos extremos como esse de greve, além de desafogar do sistema - metrô e ônibus - uma grande massa de usuários que se locomove diariamente a distâncias menores de 6km, deixando o sistema mais folgado para o uso de quem realmente mora longe. Além de situações atípicas como essas - greve dos motoristas de ônibus - a dependência existe nos dias de circulação normal. Existe uma dependência da quantidade de ônibus, o que pode gerar filas, uma necessidade de se caminhar até a parada, a existência de um tempo parado, sem deslocamento, esperando os ônibus, além do custo é claro, a necessidade de se sujeitar aos preços impostos para o deslocamento. Metrô e VLT podem ser analisados de forma similar ao ônibus em alguns aspectos da dependência, mas pelo menos rodam em estrutura segregada, são então dotados de uma maior independência, não sendo atingidos pelo engarrafamento, proporcionando maior previsibilidade e confiança nos sistemas desses modais.


Trabalhando para o carro.
No caso do carro, esta dependência se torna  mais presente na relação tempo-custo. O usuário de ônibus migra para o carro - ou para a moto - na esperança de se livrar do engarrafamento que ele mesmo vai ajudar a produzir. No Recife, até os anos 1990, nos parecia bastante viável o uso do automóvel, porque todos só pensávamos no tempo dedicado ao automóvel como sendo o tempo de deslocamento, o que faz parecer razoável o que se gasta com ele. Era mais rápido e confortável que o ônibus, e não considerávamos as outras possibilidades. Fica de fora desse cálculo o tempo necessário para caminhar do estacionamento até o trabalho, que faz parte da realidade de alguns, tempo em oficina, lava-jato, abastecimento, além do tempo de trabalho necessário para se manter esse automóvel, que é o principal fator de influência nesse cálculo. Hoje, o carro já não é o mais rápido em muitos casos. Num percurso de ida e volta ao trabalho totalizando 15km, o que é bastante comum para o recifense, se considerarmos um total de 80 minutos - 40 em cada trecho, sendo bastante generoso! -, temos uma velocidade média de 11,25km/h. Sou exemplo prático dessa velocidade: até 2012, quando tinha carro, a velocidade média acumulada marcada no computador de bordo do meu carro, sempre oscilava entre 11 e 12km/h. De bicicleta, o tempo dos ciclistas mais lentos, sem nenhuma estrutura nem proteção do poder público, gira em torno de 15km/h. A comparação porém, é mais desfavorável ainda, já que faltam fatores externos a esse cálculo do veículo. Essa pessoa que gasta 80 minutos para ir e voltar do trabalho de carro, se ela tiver um salário mensal líquido de R$4000,00, e um carro de R$30.000 que vá usar por 4 anos e depois vender por R$14.000,00 para comprar outro, gasta por dia algo em torno de 81 minutos do seu trabalho para sustentar o veículo. Das suas 8 horas de trabalho, ele trabalha 1h21min para pagar o carro. Somando-se esse tempo ao tempo de deslocamento, sua velocidade média cai para 5,58km/h, mais lento que o pedestre. Mesmo com sutis mudanças nos valores utilizados no cálculo - consideramos 9km/l de gasolina, além de um valor hipotético fixo de seguro, IPVA, manutenção, estacionamento, - essa velocidade não muda muito. Pode mudar substancialmente para acima de 10km/h, para quem tem altos salários, bem acima de R$10.000 líquidos e opte por um carro de no máximo R$35.000 reais. Ainda faremos uma postagem somente com esse cálculo. Fica claro que a principal dependência gerada pelo carro é econômica.

Mas não pára por aí. Se o usuário do ônibus fica perdido no meio da rua quando o ônibus quebra ou quando há greve, chegando a ficar 4 horas parado esperando um ônibus, o motorista não fica atrás (ou na frente? hehe). Por se locomover com um bem de alto valor, pesado e espaçoso, não tem condições de se libertar dele quando este o deixa na mão. Se acaba a gasolina, tem que ir buscar no posto e voltar. Se há um acidente, tem que ficar para resolver toda a questão burocrática. Se quebra o carro, tem que esperar o reboque e acompanhar o conserto no dia seguinte. E o pior, se está no engarrafamento, não tem como se livrar do carro e seguir a pé, de bicicleta ou de outro transporte.

Veja caso de engarrafamento na China que durou 9 dias. Calma aí! Ninguém está falando aqui que os 100km deveriam ser vencidos por todos de bicicleta. A crítica é ao modelo rodoviarista, que consome o tempo, o dinheiro e a vida das pessoas. Uma ferrovia ajudaria bastante nesse caso, pois como falamos, os trilhos conduzem veículos mais independentes dos problemas causados pelos modais baseados neste modelo rodoviarista. Você NUNCA verá um engarrafamento de 100km de trens, de pedestres ou de bicicletas.

No outro lado do critério dependência, há os outros modais, os não motorizados. É óbvio que têm suas limitações citadas já no início desse artigo, principalmente com relação à distância, e também concordamos que pessoas com limitações de locomoção têm dificuldade de se adaptar ao uso desses modais, mas a grande maioria da população se adaptaria sem grandes problemas. O pedestre é historicamente e sempre será, apesar de ter sido desfavorecido nas últimas décadas, o modal mais independente. Ele sai de casa e já começa a se deslocar ao seu destino, independente de engarrafamento, greve, quebra de veículo - não há veículo! - ou custo. Parar para se calcular o custo de uma caminhada - com generalidades estúpidas como custo do sapato ou consumo calórico - é algo tão insignificante se comparado aos motorizados, tão longe de ser caracterizado como uma dependência econômica, que não há serventia em se fazer esse cálculo. Não demanda estruturas caras como terminais ou espaçosas e custosas para a cidade como estacionamento ou mesmo bicicletário (não tão custoso nem espaçoso assim).

A bicicleta é muitas vezes indevidamente comparada ao carro ou à moto, por uma visão simplista de que se tem duas rodas, é uma moto sem motor. Ela é em vários critérios, e principalmente no critério dependência, muito melhor comparada a um pedestre sobre rodas:
- O custo é baixo, não gerando necessidade de altos salários para se sustentar o uso do veículo.
- O uso da bicicleta consome 5x menos energia que o pedestre, sendo em média 3x mais rápido que o mesmo, sendo assim concorrente do sistema de transporte pública para distâncias médias.
- Demanda pouco espaço para estacionamento - um bicicletário com 10 a 12 vagas ocupa o espaço de um carro -, e não tendo vaga, pode ser guardada dentro do imóvel normalmente ou presa a algum equipamento de rua: grade, poste, etc.
- Não é gerenciada por nenhuma concessionária, sendo o percurso totalmente livre, assim como o horário de uso. Pelo mesmo motivo, se assemelha ao pedestre em não depender de engarrafamento ou greve.
- O fator tempo varia muito pouco com engarrafamentos e outros problemas de percurso, mesmo na chuva ou neve, em cidades do mundo inteiro
- Nos casos de falha, quebra ou pneu furado, pode ser facilmente guardada ou presa com cadeado para que se busque uma solução posterior em momento oportuno. É bastante comum entre os colegas ciclistas de Recife o uso de diversas alternativas nesses momentos de quebra:
  • existem táxis especializados, com transbike, para transporte de bicicleta.
  • alguns motoristas de ônibus, em horários com menor demanda, permitem a entrada de bicicletas nos ônibus. No metrô, em alguns horários também.
  • se integram facilmente a outros modais em cidades que buscaram esse tipo de solução.
  • podem ser deixadas no local de trabalho para serem buscadas posteriormente. O ciclista usa de outro modal à sua escolha - ônibus, táxi, a pé , bicicletas de aluguel - e no dia seguinte retorna com a solução para consertar a bicicleta.
  • Tendo oficina próxima, o que é bastante provável, a grande maioria das quebras pode ser resolvida em poucos minutos, devido à simplicidade do veículo.
É esse o destino do seu dinheiro e tempo?
Certamente a independência não deve ser o único critério a se escolher um modal para se investir para uma cidade, mas investir em modais independentes melhora o funcionamento inclusive dos modais mais dependentes. Dar condições às pessoas de poderem usar mais os modais não motorizados as torna mais independentes economicamente, sobrando recursos que antes eram exclusivamente destinados à manutenção e sustento do carro,  da indústria automobilística e setores complementares, para então serem investidos em setores diversos da economia local, possibilitando um maior investimento em lazer, alimentação, habitação e tantos outros setores. Também as torna independentes no seu deslocamento, aumentando consideravelmente sua eficiência ao se transportarem, ampliando o tempo disponível para usar a cidade e conviver com outros cidadãos, já que gastarão menos tempo presas no engarrafamento. Ora... Se estimular os deslocamentos a pé e por bicicleta dá às pessoas mais dinheiro e tempo para gastá-lo na cidade, a quem não interessa investir nesses modais?

Veja também a ótima palestra A Alforria do Caracol, de Guilherme Jordão no TEDx Recife 2013, e entenda o que muda na vida de quem ganha uma opção mais independente de deslocamento.






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