quarta-feira, 23 de abril de 2014

Para encontrar a burrice, olhe para baixo.

O trânsito não é apenas o caminho do trabalho, de casa, do shopping ou da academia. O trânsito, o ir e vir - e hoje em dia permanecer por muito tempo - na rua é aquele momento inevitável em que você tem que conviver, dividir espaço com todos os outros. A não ser que a pessoa não saia de casa pra nada ou tenha um helicóptero, ela tem que enfrentar o convívio, tem que dar a cara à tapa!

Lá nos idos dos anos 1990, quando não havia engarrafamento nas proporções que vemos hoje nas grandes capitais brasileiras, as classes média e alta não tinham que enfrentar esse problema, o convívio. Cada um entrava sozinho no seu carro e sozinho chegava no seu destino. O engarrafamento veio pra deixar todo mundo bem juntinho. Você, no seu Escort, está ali ocupando o mesmo espaço, talvez um pouco menos, que uma SUV novinha ano 2015. E ambos estão no mesmo engarrafamento de quem está no Mercedão de 50 lugares, com mais 90 pessoas. O problema é que o engarrafamento, a crise
indiscriminatória do trânsito, não chegou para todos de uma vez. O transporte público não é satisfatório há décadas, os pedestres morrem às pencas há muito tempo, e ciclista é considerado um intruso no trânsito, como sempre foi. Somente a classe média e alta que sentiu esse efeito de sapo dentro da panela de água no fogão. Explico: se você coloca um sapo dentro da panela com água fria e a água vai esquentando aos poucos, o sapo não percebe que está sendo fervido e fica lá quieto, na dele, dentro da panela (o engarrafamento), até a morte. Todos nós que dirigimos nossos carros inconsequentemente dos anos 1980, 1990 ou mesmo do início dos anos 2000 pra cá, nos negamos a perceber que a água estava fervendo. Continuamos dirigindo nossos automóveis, como se adicionar água fria na panela resolvesse o problema. Só que à medida que tem mais água quente dentro da panela, adicionar água fria já não faz mais efeito, até que a água esborra.

Recife já esborrou faz algum tempo. São mais de 500 novos carros por dia, mas os sapos ainda assim não conseguem perceber, as pessoas insistem em acreditar que há solução para o automóvel numa cidade que terá sua frota de carros dobrada em 10 anos. Falta o mínimo de lógica para se entender que NÃO É POSSÍVEL DOBRAR O ESPAÇO PARA CIRCULAÇÃO NAS RUAS EM 10 ANOS, nem em 1000 anos! "O problema é a engenharia de trânsito que é ruim na cidade", "tem que construir mais viadutos", "tem muito semáforo nas vias", "tem que alargar vias", "vou procurar caminhos alternativos". Se você já disse alguma dessas frases, e pensa assim ainda hoje, aconselho pular pra fora da panela antes que seja tarde demais. E quando falo em pular da panela, nem exijo que você largue o carro amanhã e compre uma bicicleta. Isso pode ser difícil pra alguns, seja por sua realidade de deslocamento ou pelas dificuldades impostas a si mesmo. Mas pelo menos, jogue o seu cérebro pra fora da panela. Isso seria um avanço tão grande e tão transformador, é uma medida tão forte e capaz de mudar a coletividade, que você não tem  noção do poder dessa sua decisão.

Sim. Com esse texto, a única coisa que pretendemos é convidar você, que está dentro no seu carro, a ler um outro ponto de vista sobre a lógica do trânsito. Começamos com uma tese, e te desafiamos a discordar desta tese, a partir dos argumentos expostos logo a seguir. Muitos deles se baseiam  no problema citado mais acima: aprender a conviver no trânsito. Sejamos diretos por agora:

Tese
Todo motorista que desrespeita o ciclista e o pedestre, que é contra estrutura cicloviária, faixas exclusivas de ônibus ou estrutura protetiva para o pedestre, é burro.

Argumentos
Certamente há vários argumentos, mas vamos citar alguns. Tenha sempre em mente que esses argumentos não são para que você largue o carro pela bicicleta, mas para convidá-lo a apoiar a melhoria das condições para a bicicleta como transporte, assim como também dos outros modais, de forma a melhorar o seu deslocamento no seu carro.
1. Se você acha que tem muito carro nas ruas, lembro que no Brasil os deslocamentos feitos de carro ficam abaixo de 30%, algo em torno de 25%. Isso significa que os outros 75% estão se deslocando sem carros. Qualquer atitude de desestímulo aos outros modais, seja viadutos, aumento de velocidade, retirada de sinal de pedestres, encolhimento de praças ou de calçadas, vai seduzir essas pessoas a migrar para o carro, pois esse ganhou mais espaço, piorando rapidamente qualquer melhora que tenha sido obtida no trânsito com essas medidas. Vai aumentar o engarrafamento. Mesmo considerando que nem todas as pessoas têm poder aquisitivo para comprar um carro, se considerarmos só 20% do total, seria um aumento nos deslocamentos por carro de 25% para 45%, o que é bem próximo de dobrar o número de carros nas ruas.
Seguindo essa mesma lógica em outras situações do cotidiano...
2. Se você não respeita o 1,5m de distância do ciclista ou passa muito rápido perto de um ciclista, ao piorar as condições de trânsito dele, você o está estimulando a largar a bicicleta e migrar para o carro ou para o ônibus, que irá ocupar bem mais espaço no engarrafamento. Lembro que na pior situação do trânsito, o engarrafamento com mínima movimentação dos veículos, o ciclista não fica no engarrafamento, logo não o produz.
3. Se você avança o carro num pedestre que está atravessando a rua, seja na faixa ou fora dela, ou mesmo na faixa, mas com semáforo aberto para os carros, você o está estimulando a migrar para o carro ou para o ônibus. Mesmo para o ônibus, serão mais ônibus na rua e menos gente na calçada. E pedestre ocupa menos espaço que o ônibus, que ocupa menos espaço que o carro (pessoa/m2).
4. Quanto mais ciclistas ou pedestres na rua, menos veículos automotores podem causar grandes danos pessoais ou patrimoniais para você ou seu veículo. Em termos gerais, cidades com mais carros possuem mais mortes no trânsito e mais colisões. Em Recife, nos números de 2011, das 602 mortes, quase a totalidade envolveu carro, moto ou ônibus. Menos carros, menos mortes, menor prejuízo material também. É assim em todos os países que desestimulam o uso do carro. E neles tem muita gente como você, que não vai largar o carro nunca.
5. As cidades no mundo com menor taxa de engarrafamento investiram na bicicleta e no pedestrianismo.
6. Quanto menos motoristas nas ruas, mais fácil encontrar vagas para estacionamento. Se pretendem tirar 100 vagas de automóvel perto do seu trabalho para a construção de uma ciclofaixa ou ciclovia, basta um número de 100 motoristas que troquem o carro pela bicicleta - número fácilmente atingível, muito menor que os 1 milhão de motoristas que passam pelo Recife diartiamente - para que a medida compense para quem continua de carro. Serão 100 carros a menos para disputar as vagas, além da vantagem de organizar as bicicletas somente num lado da via. Se desejam tirar uma vaga de automóvel para colocar um paraciclo com 10 vagas para bicicleta, apóie!!! Bastam dois ex-motoristas usarem-no para estacionar suas bicicletas que compensará a vaga perdida e ainda ganhará mais uma, já que são dois motoristas a menos disputando a vaga.
7. Um ciclista se locomove de 15 a 25km/h de média. É bem mais que a média de Recifede carro nos horários de pico para a grande maioria dos percursos. Zona Norte-Recife Antigo não passa de 12km/h. Se você protegê-lo durante o trajeto, não ameaçá-lo, estará contribuindo para o aumento de ciclistas, diminuição de carros e ônibus, e consequente aumento de espaço disponível. Assim poderá desenvolver velocidades médias maiores no seu percurso, mesmo sem atingir grandes velocidades máximas. Já pensou se 1/4 dos carros da Rui Barbosa desse lugar à mesma quantidade de bicicletas? Quanto espaço novo surgiria para a locomoção de automóvel? Basta olhar para o seu lado enquanto dirige e ver quanto espaço você está ocupando ao estar só dentro dele. É espaço para 5 pessoas mais uma mala cheia de objetos. Isso para diariamente ir ao trabalho sozinho.

Os argumentos são relativamente repetitivos e interligados. Podemos resumi-los em um só: quanto mais você colaborar para o deslocamento de todos os outros modais que ocupam menos espaço que o carro se deslocando e estacionados (inclusive o ônibus, claro!), mais espaço sobra para você dirigir seu carro. Há exemplos práticos e teoria pra isso. É apenas outra forma de ver o argumento "quanto menos espaço para o carro, menos engarrafamento". Parece sem lógica, se você lê a frase pensando somente no carro.
Mas se você considera que nesse espaço retirado dos carros vai caber mais pedestres, ciclistas ou ônibus, começa a fazer sentido. Seja inteligente. É somente uma questão de parar de olhar pra baixo, para o próprio umbigo, e olhar um pouco ao redor.

Se você se interessa um pouco por Física ou quer simplesmente saber um pouco mais sobre o assunto, aconselhamos ler esse texto. Menos vias, menos engarrafamento.

Tenha um bom dia. Nos vemos no trânsito!

7 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Bom, nós sabemos que o transporte público daqui não funciona. No caso, utilizar bicicleta seria a melhor solução, mas eu, por exemplo, moro em Paulista, não seria uma distância muita grande pra ser percorrida de bicicleta? Na minha opinião o uso da bicicleta é bem vindo, mas eu acho que pra transporte de massa o metrô é melhor opção, principalmente nas regiões mais distantes e mais densas populacionalmente.

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    1. O texto não é exatamente um convite ao uso da bicicleta. Veja que todos os argumentos são sobre aceitar e proteger o ciclista no trânsito, de forma a ele seguir seu caminho tranquilamente, ocupar menos espaço no trânsito e deixar mais espaço pra quem vai de carro ou ônibus.
      No seu exemplo Paulista - Centro do Recife, um ambiente favorável ao ciclista, com ou sem estrutura cicloviária, onde você e todos os outros motoristas vão respeitar e proteger os ciclistas que encontram no caminho, isso estimularia todos que fazem percursos menores como Paulista Olinda, Olinda Derby, Pau Amarelo Janga, ou mesmo um bastante disposto a fazer Paulista Centro do Recife, a continuar fazendo seus percursos de bicicleta, ou mesmo começar, sobrando mais espaço para os motoristas.
      Quanto mais gente usando outros modais que ocupam menos espaço, mais espaço para os motoristas.

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  3. Nos seus argumentos, onde você escreve "bicicleta", reescreva "motocicleta". Você concordaria com o seu texto?

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    1. Wandelvelde, muito interessante seu argumento!
      Inicialmente, gostaria de expor que somos defensores do transporte não motorizado, por uma questão ideológica, o que não impede de concordar que o motociclista merece participar do trânsito de forma segura. Seguindo a lógica do CTB e da Política Nacional de Mobilidade Urbana, defendemos o nosso rei - o pedestre -, depois a bicicleta. Mas, a moto, por ser menor que o carro, também deve ter seu usuário protegido e não ameaçado pelos veículos maiores. Há outros problemas no uso da moto, como poluição, poluição sonora, e a capacidade de atingir grandes velocidades. Não é a toa que a moto responde por 16% dos deslocamentos e 33% das mortes no trânsito. A bicicleta responde por 4% dos deslocamentos e 2% das mortes. Esses dados só ajudam a demonstrar um erro comum de comparar a bicicleta com a moto. A bicicleta está mais par aum pedestre sobre duas rodas - por ser não motorizado, principalmente - e a moto está mais para um carro sobre duas rodas - com motor, atinge grandes velocidades. No quesito espaço, certamente a moto é melhor que o carro. Mas ideologicamente, levando em consideração vários outros quesitos, continuamos focando no pedestre e na bicicleta. Certamente vários desses argumentos servem para a motocicleta.
      Veja o exemplo de Paris, cidade que tem investido maciçamente na bicicleta, e tem seu trânsito organizado, com vários estacionamentos exclusivos para motocicletas também. Há espaço pra todo mundo no trânsito, a estratégia deve ser sempre priorizar quem ocupa menos espaço, quem polui menos, quem mata menos, etc.
      Até a próxima!

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  4. Acho o texto importantíssimo, mas sempre fico um pouco triste sabendo que relativamente poucos vão ler. Talvez fosse interessante compartilhar o resumo do final do teto numa pequena imagem que possa ser compartilhada facilmente no Facebook.

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    1. Interessante, Guga. Tens condições de fazer isso pra gente? Somos um site bastante colaborativo.

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