quarta-feira, 30 de abril de 2014

Holanda: estrutura, educação, fiscalização e LEI!

Quando se pretende buscar organização em qualquer situação/setor da sociedade, não se pode tratar todos os agentes envolvidos sem considerar suas diferenças. No exemplo mais banal, numa sala de aula, o professor tem uma posição diferente dos alunos. Da mesma forma, não trata todos os alunos iguais, dando atenções especiais às dificuldades de cada um. No trânsito não pode ser diferente. Entretanto, apesar do nosso aparato legal ser razoavelmente bom, ele não é cumprido pelas próprias autoridades. Seria um avanço o simples cumprimento do CTB e da PNMU.

Holanda: 60 anos de modernização pós-guerra
e mortes no trânsito caem pela metade.
É relativamente fácil viajar para outro país e dirigir um automóvel, como se estivesse no Brasil, com o conhecimento que temos sobre as leis de trânsito de nosso país. O que muitos não sabem é que há diferenças substancias em como o ordenamento jurídico de diferentes países trata os participantes do trânsito. Se temos um exemplo a seguir é a Holanda. Por que investe nas bicicletas? NÃO! Porque a Holanda reconhece em suas leis as diferenças de potencial ofensivo, de fragilidade dos participantes do trânsito, reconhece o princípio da autoproteção que envolve o caminhar e o pedalar. Porque na Holanda, a taxa de mortalidade no trânsito é muito menor que no Brasil, porque em Amsterdam a taxa de mortalidade no trânsito é 90% menor que em Recife, e isso propicia às pessoas escolherem os seus modais segundo vários fatores: conforto, praticidade, custo, sustentabilidade. Mas um fator está garantido para TODOS OS MODAIS não só por existir estrutura e educação, mas por existir leis que o garantam: SEGURANÇA.

Para entender melhor, o excelente texto The American right-of-way do The Economist (traduzido aqui por um colaborador), periódico americano, evita os termos técnicos, mas usa exemplos práticos para explicar o que legalmente seria o funcionamento perfeito do artigo 29 do CTB - o maior protege o menor - na Holanda. E isso não é uma campanha, uma questão de educação ou de opção, é uma obrigação legal imposta ao motorista.
A prioridade no trânsito americano

Apesar do título em tom de brincadeira, a opinião de Daniel Duane no New York Times dominical, “Is It OK To Kill Cyclists?” é de uma seriedade fatal. Exatamente como o Sr. Duane escreve, motoristas nos EUA, em geral, não recebem punição alguma por atingir ou matar ciclistas, mesmo quando o acidente foi claramente culpa deles. Esta louca lacuna no sistema judiciário reflete a intolerância extrema e sistêmica de motoristas contra ciclistas, e seria muito fácil consertá-la. Tudo o que os EUA teriam que fazer seria adotar regras de trânsito como as existentes na Holanda, onde o número de ciclistas é muito maior, apesar de sua taxa de mortalidade por quilômetro pedalado ser muito menor. Para ilustrar como as regras de trânsito na Holanda diferem das americanas, temos aqui alguns casos hipotéticos holandeses a serem analisados.
  • Digamos que um caminhão esteja fazendo uma curva em alta velocidade em uma pista de quatro faixas em “The Hague”, e passa por cima de um ciclista em uma ciclofaixa. O acidente foi testemunhado por um observador muito confiável cujo testemunho seja muito provavelmente aceito em uma corte – digamos que seja o primeiro-ministro do país. Quem tem a culpa e vai ter que pagar pelos danos e/ou encarar as punições criminais? Resposta: o motorista do caminhão.
  • Mas se o mesmo acidente ocorrer em uma pista de duas faixas que não tenha ciclofaixa, ou seja, o ciclista estava andando na via? E se não houver testemunhas ou evidências em vídeo? Quem é o culpado então? Resposta: o motorista do caminhão.
  • O que aconteceria então se houvesse um sinal de trânsito para a bicicleta naquela esquina e o ciclista estava claramente avançando o sinal vermelho? Resposta: ainda o motorista do caminhão.
  • Ok, então… E se o ciclista estivesse vindo na contra-mão em uma rua de mão única, chegasse na esquina ao mesmo tempo do caminhão, e apesar do fato do sinal estar aberto para o caminhão, o ciclista ignorasse isso e corresse passando direto pelo cruzamento? Resposta: o motorista do caminhão teria que pagar ao menos 50% dos danos, a não ser que ele pudesse provar que era impossível ter visto o ciclista.
  • Tranquilo. E se um tornado vem vindo pelas ruas de alguma cidade holandesa, arrasta o caminhão e o joga na direção do ciclista, que estava avançando um sinal vermelho e andando na contra-mão em uma rua de mão-única? Resposta: o motorista do caminhão provavelmente não teria que pagar os danos do ciclista, a não ser que ele tivesse 14 anos ou menos, caso no qual o caminhoneiro teria que provar que não tinha nada que ele pudesse ter feito que poderia ter evitado o acidente.
Para resumir: na Holanda, se um veículo motorizado atingir um ciclista, assume-se sempre que a culpa é do motorista, não do ciclista. Isto é explicado neste FAQ da ANWB, a organização de turismo e de proprietários de carros holandesa, “a lei trata pedestres e ciclistas como participantes mais fracos no tráfego... O motorista do veículo motorizado é o responsável pelo acidente, a não ser que ele possa provar que foi dominado por circunstâncias além do seu controle. O motorista deve então provar que ele não teve culpa alguma, o que é extremamente difícil na prática.”

Esse sistema de regulamentação bota um fardo extra nos motoristas. Esse fardo pode ser resumido pelo seguinte: antes de virar em uma rua, você tem que verificar cuidadosamente no seu retrovisor para ver se vem algum ciclista. E ponto final. Quando você dirige na Holanda, você tem que ser mais cuidadoso do que você iria se dirigindo nos EUA. Isto leva a uma injustiça desproporcional aos motoristas? Não. Isto leva a muito menos acidentes. A ANWB diz que alguns motoristas podem pensar que este tratamento de responsabilidade dá aos ciclistas “um cheque em branco para ignorar regras. Porém um ciclista não vai avançar deliberadamente um sinal vermelho pensando: ‘Não importa, eu não vou ter que pagar pelos danos mesmo.’ É muito mais provável que ele seja influenciado pelo risco que tem de acabar em um hospital.”

É claro, o sacrifício não vem apenas de um lado. Ciclistas na Holanda aprendem a ficar nas ciclofaixas quase onipresentes do país, a não avançar sinais vermelhos, e a sinalizar antes de fazer uma curva, e eles obedecem essas regras mais metodicamente do que os americanos – parte porque se eles não fizerem isso, é provável que atrapalhem ou atinjam outros ciclistas, que lhes retribuirão com alguns xingamentos. Além disso, os sinais de trânsito e a infraestrutura das ruas são adaptadas às necessidades dos ciclistas, o que provoca uma certa inconveniência aos automóveis, apesar que não tanto quanto ter um monte de bicicletas no meio do trânsito, ignorando as regras.
Uma frase chama atenção no texto: "a não ser que ele (o motorista) pudesse provar que era impossível ter visto o ciclista". Isso demonstra que na Holanda há um custo legal ao tirar o carro da garagem. Você está colocando um veículo de pelo menos uns 800kg na rua, com o qual você pode facilmente atingir velocidades perigosas no ambiente urbano. Só por tirar o veículo da garagem, você já se torna automaticamente responsável pelo que acontecer com o seu veículo e todos os outros que estão em situação mais frágil no trânsito. O motorista tem que provar sua inocência como alguém que tem porte de arma e se atingir alguém, tem que provar que o disparo foi acidental.

Aí está a grande dificuldade de entendermos o funcionamento disso na sociedade. Não estamos acostumados a receber todo esse peso nos ombros ao conduzirmos um veículo. Em troca, ao utilizarmos uma bicicleta, pedalamos com todo o peso de nossa vida nos ombros. Mas podemos ter certeza de uma coisa. Se não fosse esse aparato legal de proteção, essa lógica de imposição de responsabilidade ao motorista, não veríamos nas ruas de Amsterdam uma cena como essa, que para nós parece uma situação lúdica de tão distante, mas sintetiza bem o destaque da Holanda no quesito segurança do trânsito.
Obs: A mãe está alguns metros atrás, com outra criança menor numa bicicleta-carrinho de bebê.



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