quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Sentando no selim

A bicicleta foi e sempre será um instrumento de liberdade para a mulher. Estudos comprovam que cidades mais seguras para pedalar e menos opressoras, tanto no sentido da segurança no trânsito como do machismo (se você é mulher, sabe o quanto é difícil pedalar e ficar ouvindo cantadas machistas o tempo inteiro), têm mais mulheres nas ruas pedalando.

Esse belíssimo texto da revista Bone Shaker nº 14 fala sobre isso de um jeito tão legal que traduzimos pra publicar aqui no Cicloação. Por sinal, fica a dica: a revista Bone Shaker é das melhores que existem quando o assunto é bicicleta. Vende pela internet e chega no Brasil!

Curta o texto. E que tenhamos cada vez mais e mais mulheres pedalando!

Sentando no selim

Não posso deixar de sorrir quando eu me vejo inclinada sobre a desgastada e enferrujada bicicleta, segurando a ferramenta com os meus dedos doloridos e sujos de óleo. Três semana atrás, meu pai tinha ajeitado minha bicicleta - levantou o selim, consertou meu dínamo e ajustou meus freios. E agora, enquanto eu ajudo minha amiga iraniana a baixar seu selim, dou uma olhada na corrente avermelhada, me lembro de lhe dar minhas, agora redundantes, luzes traseiras e checo novamente se seus freios dianteiros realmente funcionam.
O pino está finalmente apertado. Dou um passo atrás e observo assustada minha amiga tentar (e não conseguir) passar a perna por cima do seu selim. Algo me diz que a sua minissaia não é o problema.
"Você já teve uma bicicleta?"- pergunto-lhe hesitante.
"No Irã?" - ela me olha. "A gente costumava pedalar nos parques quando criança, mas, para as mulheres, é proibido pedalar em público".
Minha amiga tem 28 anos. Eu me pergunto quando ela deixou de ser criança, mas engulo de volta a pergunta. Em vez disso, pego minha bicicleta e lhe mostro como subir e descer facilmente da magrela, mesmo de saia. A máxima "como andar de bicicleta" me ocorre. Claramente, fazer isso de verdade não é a mesma coisa. Mas então ela tenta e, balançando como uma criança de dez anos usando a bicicleta da irmã mais velha, adoravelmente confiante na sua própria inexperiência. Eu cuido dela com certo orgulho e, para surpresa dos fumantes agrupados ali perto, começo uma corridinha, segurando-a e mantendo seu equilíbrio enquanto ela pedala, à semelhança do que meu pai fez quase vinte anos atrás, seguindo a minha bicicleta de princesa decorada com fitinhas coloridas.
Ficamos ali por pelo menos meia hora, rindo alegres e repetindo o processo do início, enquanto eu lhe explicava o que são as marchas do câmbio, como funciona um dínamo e por que a luz dela não ligava automaticamente.
Mais tarde, pedalo para casa mais devagar do que de costume. A falta de liberdade que minha amiga deixou pra trás quando veio estudar na Europa sempre foi algo abstrato para mim. Tentava não julgar uma cultura sobre a qual conhecia muito pouco. Mas num espasmo assustado, percebi que, se fosse eu, teria tido meus livros e minha bicicleta tirados de mim. Eu nunca tinha questionado as pequenas liberdades que minha bicicleta e meus companheiros alforges me permitiram, seja liberdade social ou econômica. Minhas duas rodas me levaram a festas quando adolescente, me carregaram pela cidade quando eu estava sem grana e levaram-me aos vários empregos de férias de verão que tive.
Durante o verão, milhares de nós, fomos inspiradas pela luta de uma garota pela liberdade quando assistimos ao filme saudita Wadjda. Enquanto escrevo, mulheres no Egito estão protestando pelo direito de pedalar sem serem sexualmente assediadas. É a campanha "Nós Vamos Pedalar". A invenção da bicicleta trouxe um importante instrumento para o feminismo ocidental: de repente, era possível às mulheres de classe média se locomover pela cidade, por si mesmas - roupas femininas menos limitadoras se tornaram necessárias e  aceitáveis.
Pedalar é uma das mais simples liberdades que existem. Tão simples que nós frequentemente nos esquecemos dela. Só que para usufruí-la nós precisamos antes ser capazes de subir na bicicleta.



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